Sentiu que uma enxurrada de abelhas estava lhe entrando boca
adentro. Ouvia o zumbido ensurdecedor do enxame e sentia a língua queimar pelos
ferrões que a furavam sem qualquer misericórdia. Pensou que ia desmaiar, que
não suportaria a dor, que as palavras que pensava em dizer antes que lhe
passasse isso iriam afogá-la no inchaço das picadas. O cabelo descabelado,
rodamoinhos vivos suspensos no ar. O pânico.
Coisa mansa de dar pena que era ela. A bichinha tentou ainda
disfarçar. Sacudiu-se delicadamente em direções opostas. O silêncio nem viu o
grito romper no ar. As palavras não saíram. As palavras entupiram-se todas na
garganta. Pobrezinha. Esperou estar só. Esperou entrar a vizinha da frente.
Esperou voar do fio o beija-flor um seu amigo. Esperou ainda dobrar a esquina a
campainha anunciando o pão quentinho. Aí sim foi que saiu. Um grito fino, de
criatura pequena. De quem aceita o destino que vem.
Ainda se morresse era sem alarde.
Nunca tinha sido fã de
barulhos. Depois, como se podia explicar às coisas e aos animais cuja fé no
concreto se estende para o alto, inabalável, feito a estátua da liberdade, que
suas abelhas não se podiam ver?
Quando pequena morria de medo das abelhas. Tanto que um dia
resolveu capturar uma. Colocou-a em um pote de geléia de amora. Achou que o
cheiro de amora faria sua abelha menos infeliz. Mas não se pode enganar a
natureza. A abelha amanheceu dura feito pedra. As patinhas ainda cheias de
pólen viradas para o ar. Quatro fiapos tão secos e frágeis como normalmente são
quase um segundo antes de romper feito pó pela eternidade afora. Ela não sabia,
mas tinha se condenado a uma guerra secreta e infinita. A natureza morta afinal
não tinha nada que ver com o quadro de Cézanne que sua vó mantinha na cozinha.
A natureza morta era só esse monte de fiapo sem graça de matéria sendo jogado ao vento
pelas mãos do destino. Crueldade zero, apenas pragmatismo natural. E uma grande culpa. A maldição nascia exatamente ali. Em todos os nascimentos e mortes lá estariam as abelhas.
E o medo.
E a culpa.