quarta-feira, maio 16, 2018

Não é o fim





Era bem cedo de manhã e alguns gados já pastavam ao longe. Eu encostei na coluna da varanda e fiquei ouvindo-os mugir no vazio do vale da Paciência. Podia jurar que uns parentes da vó Cidinha também conseguiam escutar lá no condado de Maricá, tão longe o eco parecia chegar vencendo barreira por barreira as fileiras intermináveis de araucária que ocupavam o topo daqueles montes. O sol se desvendava ligeiro por detrás do cume ao leste e o cheiro da loja de papai invadia dançante o meu nariz, anunciando que o café preto estava pronto à esquentar as idéias! Devia ser umas quase sete horas. Eu tinha acordado muito antes disso. Levantei devagar e saí de fino do quarto, pra não acordar meus irmãos. Arrastei os pés e destranquei os trincos. Se dodô me pega é o fim. Mas não tem nada melhor que ver o dia chegar, tão silencioso e colorido. Se bem que nem sempre é tão silencioso. Há aqueles dias em que os animais estão atacados e os gansos, cigarras, galinhas, coelhos, porcos e bois resolvem cantar uma sinfonia de me fazer querer fugir do mundo. Nunca fugi. Tem sempre grilos pra onde eu vou, de qualquer forma. Você se acostuma com o som, porque volume de mundo não se abaixa. E você até passa a gostar. Hoje eu não queria o café do pai, estava de mal com a vida. Tinha umas questões perturbando a minha cabeça. Sabe? Não importa o quanto você tenta ser legal com as pessoas, algumas simplesmente não retribuem. O imbecil do Toninho, por exemplo. Ele mora aqui atrás, o pai dele alugou os fundos da barraca do seu Nico. Vieram do norte. O lugar é pequeno e quente, e às vezes me dá uma dó danada quando eu passo e vejo o Toninho fazendo o dever no quintal, por causa da luz, mas isso não justifica nada! A peste do garoto me veio chorando contar a história horrível de que tinha ido atrás dum pintassilgo e caído do tronco podre de uma mangueira. Ele tinha uns arranhões fortes nas pernas e braços e mancava um pouco. Estava todo lanhado.
-“Ai, cara. Tá doendo muito. Mas vai ficar bom, vai ficar bom.” – Ele parecia bastante otimista quando dizia isso, mas segurava o ar na bochecha pra não respirar a dor nem deixar transbordar os olhos. Nas mãos carregava as duas partes do estilingue, presas apenas pelo elástico. O galho tinha partido ao meio. O moleque tava chorando e eu detesto ver moleque chorando, então eu levei ele na torneira e gastei um pouco de água e gogó. No fim, catei o estilingue vermelho e entreguei na mão dele.
-“Toma, não é o seu mas é bom também.”
O danado me olhou com os olhos brilhando. As lágrimas secaram na hora.
-“Poxa, Betinho. Tem certeza? Tu é um molequinho bom.”
-“Claro! Pode levar! Faço outro qualquer hora dessas.”
Bem que eu achei que ele se animou rápido demais com o estilingue, porque não demorou nada a se levantar e sair puxando a perna manca pra fora dali. Na última olhada que me deu, percebi um ar de mistério, um sangue quente guardado, um relance de vingança no fundo preto dos seus olhos embaçados. Toninho era 3 anos mais velho que eu. Na hora me deu um arrepio na espinha, pensei que fosse a brisa. Não era.
Três dias depois mamãe mal tinha acabado de atar o laço que ia na gola do uniforme já tavam me chamando lá fora. Um tom diferente. Coloquei o nariz pra fora e apertei os olhos. Não conhecia ninguém. Eram 3 garotos. Me aproximei devagar, deu tempo de ver bumbo passando do outro lado. Assobiei pra ele, era nosso código.
“-Aí, você que é o Beto?” – Ele já tinha chegado a uma distância mínima do meu rosto.
“Tá vendo isso aqui?”
O olho direito do garoto tinha uma ferida enorme. Foi a última coisa que ví antes dum soco me acertar em cheio na bochecha. Fui da dormência ao silêncio em poucos segundos.
Bumbo disse que os outros dois foram me bicar, enquanto o do soco sacudia os dedos no vento. Cara dura, Betão! ele disse. Mas sei lá. Bumbo era meio mentiroso. Se minha cara fosse dura não tava esse estrago... Bumbo, meu irmão mais velho. Não era O mais velho, mas era mais velho que eu e a gente vivia aprontando por aí. Mas dessa vez Bumbo não tava rindo, como costumava rir. Riso parcelado, provocativo. Ele tirava sarro de tudo! Sempre tirou! Mas mantinha um olhar oblíquo, fugidio. Eu entendi logo. Não aguentava guardar tamanha raiva dentro de si. Ele ia vingar a gente.

O momento em que o copo caiu não se sabe se cheio ou vazio


Alguma coisa entre eles tinha se quebrado. Eu não sabia como aquilo tinha acontecido ou em que momento exato, ou ainda qual dos dois teria deixado cair o recipiente tão frágil onde escondiam seus sonhos escorregadios e que, deveras displicentemente, carregavam  afoitos e chapados através da correria dos dias. Eram jovens ainda. Aprendizes de equilibristras fazendo manobras arriscadas na corda bamba. Num desses passeios cósmicos, ela se sentou ao seu lado na cama e soube, assim que o viu repousar o peso sobre teu corpo, que não havia muito mais que pudessem se dizer. Já estavam correndo sem parar há quatro anos e no fim de uma curva sinuosa acabaram levando aquela flechada certeira que se crava no peito de quem carrega a certeza de ter encontrado diamantes sob os olhos do amor romântico. Esse amor não conta os beijos que não recebemos ou as horas em que ela vagueou zonza ao seu redor tentando caber no desgosto de não ser o terremoto mais forte de emoções que pudesse haver nessa duração tão curta que é a vida da gente. Ele às vezes tem só um pedaço de chocolate e mesmo assim, o divide com ela. Ele sempre dividiu tudo que estivesse ao alcance de suas mãos. Mas nunca cogitou a hipótese, com tanta e toda a física que tem, de que se houvesse algo metafísico como anunciou Kant ou Schopenhauer, e que então talvez aquilo também fosse divisível. E tantas vezes quis gritar pra que se danasse o chocolate! Porque era vida o que queria dividir. E acabou que esse maldito silêncio, embotado na frieza dos dias nublados de outono, os fez reféns de seu próprio medo.
O sonho passou então a se alimentar na larica das solidões. Do seu caminhar tão à parte levantou-se a poeira que embaçou a vista das certezas. A fumaça até espantou a crise mas não os escondeu do fantasma da dor. Os impulsos da idade se apossavam dele e gritavam com ela em cada discussão que tinham. O que um buscava era o oposto do que se reconhecia no outro. Ela era o fim de resoluções que ele havia planejado para si tão cuidadosamente ao longo de anos de wanderlust e que só tiveram fim com o tapa seco do mundo adulto estalando exato no centro rosa da sua bochecha macia.
Mas se ficassem ali, esperando o vermelho dolorido passar e respirassem juntos, calados, então o ritmo de suas respirações se alinhavam e não demorava até que um corpo começasse a sentir a presença do outro para que aquelas ondas mornas de pele oscilante se desprendessem, magnetizadas,  e fossem triunfantes se encontrar em um longo arrepio capaz de os fazer arder de vida e desejo. E a coça da vida virava só uma coça de mãe. Juliana fora muitas vezes a primeira a agir em conformidade com os impulsos químicos que tiniam entre os dois, mas já aprendera igualmente a reconhecer essa artimanha do corpo e ela que sempre foi fã de neurociência passou a enviar mensagens consistentes ao cérebro evidenciando a percepção de sua manobra estritamente química cuja conjugação se dava em tão estridente desconforme com suas idéias à respeito da sociedade e de como nós, animais, vívidos e exploradores deveríamos nos comportar na vida terrena. Queria ir para um lugar tão distante quanto possível, queria estar com os dois pés enfiados na terra de maneira que criasse laços profundos com ela, mas não raízes, pois que raízes indicavam ao ser vivo que as possuísse uma necessidade tangente da qual dependia sua sobrevivência e que consistia em retirar os proventos físicos ou subjetivos, emocionais, do espaço delimitado ao redor de si. Mas não sem que para isso estivessem tão intrinsecamente agarrados às profundezas do solo que jamais, como que por maldição, pudessem percorrer a distância de um deserto para entender por quê é que o verdadeiro milagre é que haja escondido em alguma de suas parecências o mais deslumbrante oasis de águas límpidas e cristalinas onde a alma, para além do corpo, se refastelaria numa celebração da volátil eternidade da existência humana consciente.

Muitas vezes quis só um amigo também. Uma pessoa que vivesse além do rascunho das características-que-lhe-aprouveriam-em-alguém e que pudesse aceitar com humildade até os seus impulsos mais selvagens de estreiante no sistema solar. Quis lhe oferecer um amor despido de dogmas. Despido de roupas, de vergonha ou jogos. Quis te contar algumas verdades. Te mostrou uma menina que tinha escondido detrás de uma árvore da memória. Te segredou a mulher numa noite estrelada. Deixou você ver que a que chorava, a que se sentia só. Você teve a oportunidade de conversar com a sua fraqueza e ela que tão raramente a levava para passear. Quando te fez a maioria das revelações, esperou que estivessem no meio da dança. Esperava que você estivesse com as pontas dos dedos agarrados às pontas dos seus dedos, pronto a rodopiá-la pelo salão para preencherem mais um território rítmico, mas deslumbrados com o mundo todo e suas luzes, se distraíram e mal dançarinos que eram, tiveram seus pares roubados pela tempestade das ilusões. Alguns desejos chegaram a agonizar no túnel do esquecimento antes de se tornarem os fantasmas aterrorizantes que os perseguem no silêncio dessas tardes frias. Descobriria um dia que esperara demais, como em todos os livros mais bobos que já tinha lido.
Agora percebo que como o mar, ela o arrastou para sua própria imensidão. Conspirou com a força dos ventos e se reuniu com a filosofia. Lançou mão de ferramentas poderosas para essa tentativa. Não estava apostando para perder. Não mais. Ela tomou você para si bruscamente e fez o favor de não olhar pra trás enquanto quebrava os ponteiros do relógio. O tempo a olhou feio de cima e rugiu. Ela fingiu que não viu. Era domadora de nuvem, tinha o xicote da coragem costurado no pulso. Leão de fim de inverno? Não era a batalha mais fácil de ganhar. Ele a jogou na garupa da moto e pegou a estrada. Eles realmente pegaram a estrada. Adiaram o fim do mundo, mas comemoraram como o fim da guerra. Não era. Foram tantos passeios que calculavam terem aposentado a companhia de quase todas as outras pessoas, à exceção do leãozinho e de você. Houve momentos em que o cinza sumiu do horizonte e tudo que se via era um azul brilhante.
Acontece que a tempestade é o impiedoso capataz do tempo. Animal não compete com o mundo porque não se compete com céu carregado. Se o tempo fosse um homem ele seria impiedoso e usaria chapéu. Mas o tempo é o senhor da vida. E aqui, nesta vida, a chuva os pegou.



Eu era a mulher mais maravilhosa do mundo até que eu parei de rir de tudo 
porque algumas coisas simplesmente não tinham mais graça.

Eu fui perfeita, porque eu sou tão linda, mas aí eu te encarei de frente  
Eu te disse: “Não. Isso não.” e você começou a imaginar se realmente estava disposto 
a enfrentar a verdade que é preciso pôr para fora para levar um relacionamento com igualdade.

Você me tratava como uma gatinha presa na árvore, e Deus (whatever that entidade is), como eu detestava isso, então eu resolvi te levar pra sair algumas vezes 
e pagar a conta e isso sempre te deixou confuso. Como era difícil entender, não é mesmo?

Eu amaldiçôo o teatro dos bons costumes.

O amor romântico é uma farsa.

O amor romântico é o inimigo de mães cansadas e traídas.

A convenção é uma parede que esconde o inferno por detrás das suas camas vazias.

Uma flor em 08 de março.

“Nenhum bombom?”

Todas as pessoas estão doentes.  

Me desculpa por não precisar ser salva. Tive que me salvar faz tempo.

Todo mundo precisa ver a culpada pela própria vida
“Olha ela como anda e ri”
Faz cosquinha no buraco de seus corpos.