Alguma coisa entre eles tinha se quebrado. Eu não sabia como
aquilo tinha acontecido ou em que momento exato, ou ainda qual dos dois teria
deixado cair o recipiente tão frágil onde escondiam seus sonhos escorregadios e
que, deveras displicentemente, carregavam
afoitos e chapados através da correria dos dias. Eram jovens ainda.
Aprendizes de equilibristras fazendo manobras arriscadas na corda bamba. Num
desses passeios cósmicos, ela se sentou ao seu lado na cama e soube, assim que
o viu repousar o peso sobre teu corpo, que não havia muito mais que pudessem se
dizer. Já estavam correndo sem parar há quatro anos e no fim de uma curva
sinuosa acabaram levando aquela flechada certeira que se crava no peito de quem
carrega a certeza de ter encontrado diamantes sob os olhos do amor romântico.
Esse amor não conta os beijos que não recebemos ou as horas em que ela vagueou
zonza ao seu redor tentando caber no desgosto de não ser o terremoto mais forte
de emoções que pudesse haver nessa duração tão curta que é a vida da gente. Ele
às vezes tem só um pedaço de chocolate e mesmo assim, o divide com ela. Ele
sempre dividiu tudo que estivesse ao alcance de suas mãos. Mas nunca cogitou a
hipótese, com tanta e toda a física que tem, de que se houvesse algo metafísico
como anunciou Kant ou Schopenhauer, e que então talvez aquilo também fosse divisível.
E tantas vezes quis gritar pra que se danasse o chocolate! Porque era vida o
que queria dividir. E acabou que esse maldito silêncio, embotado na frieza dos
dias nublados de outono, os fez reféns de seu próprio medo.
O sonho passou então a se alimentar na larica das solidões.
Do seu caminhar tão à parte levantou-se a poeira que embaçou a vista das
certezas. A fumaça até espantou a crise mas não os escondeu do fantasma da dor.
Os impulsos da idade se apossavam dele e gritavam com ela em cada discussão que
tinham. O que um buscava era o oposto do que se reconhecia no outro. Ela era o
fim de resoluções que ele havia planejado para si tão cuidadosamente ao longo
de anos de wanderlust e que só tiveram fim com o tapa seco do mundo adulto
estalando exato no centro rosa da sua bochecha macia.
Mas se ficassem ali, esperando o vermelho dolorido passar e
respirassem juntos, calados, então o ritmo de suas respirações se alinhavam e
não demorava até que um corpo começasse a sentir a presença do outro para que
aquelas ondas mornas de pele oscilante se desprendessem, magnetizadas, e fossem triunfantes se encontrar em um longo
arrepio capaz de os fazer arder de vida e desejo. E a coça da vida virava só
uma coça de mãe. Juliana fora muitas vezes a primeira a agir em conformidade
com os impulsos químicos que tiniam entre os dois, mas já aprendera igualmente
a reconhecer essa artimanha do corpo e ela que sempre foi fã de neurociência
passou a enviar mensagens consistentes ao cérebro evidenciando a percepção de
sua manobra estritamente química cuja conjugação se dava em tão estridente
desconforme com suas idéias à respeito da sociedade e de como nós, animais,
vívidos e exploradores deveríamos nos comportar na vida terrena. Queria ir para
um lugar tão distante quanto possível, queria estar com os dois pés enfiados na
terra de maneira que criasse laços profundos com ela, mas não raízes, pois que
raízes indicavam ao ser vivo que as possuísse uma necessidade tangente da qual
dependia sua sobrevivência e que consistia em retirar os proventos físicos ou
subjetivos, emocionais, do espaço delimitado ao redor de si. Mas não sem que
para isso estivessem tão intrinsecamente agarrados às profundezas do solo que
jamais, como que por maldição, pudessem percorrer a distância de um deserto
para entender por quê é que o verdadeiro milagre é que haja escondido em alguma
de suas parecências o mais deslumbrante oasis de águas límpidas e cristalinas
onde a alma, para além do corpo, se refastelaria numa celebração da volátil
eternidade da existência humana consciente.
Muitas vezes quis só um amigo também. Uma pessoa que vivesse
além do rascunho das características-que-lhe-aprouveriam-em-alguém e que pudesse
aceitar com humildade até os seus impulsos mais selvagens de estreiante no
sistema solar. Quis lhe oferecer um amor despido de dogmas. Despido de roupas,
de vergonha ou jogos. Quis te contar algumas verdades. Te mostrou uma menina
que tinha escondido detrás de uma árvore da memória. Te segredou a mulher numa
noite estrelada. Deixou você ver que a que chorava, a que se sentia só. Você
teve a oportunidade de conversar com a sua fraqueza e ela que tão raramente a
levava para passear. Quando te fez a maioria das revelações, esperou que
estivessem no meio da dança. Esperava que você estivesse com as pontas dos
dedos agarrados às pontas dos seus dedos, pronto a rodopiá-la pelo salão para
preencherem mais um território rítmico, mas deslumbrados com o mundo todo e
suas luzes, se distraíram e mal dançarinos que eram, tiveram seus pares
roubados pela tempestade das ilusões. Alguns desejos chegaram a agonizar no
túnel do esquecimento antes de se tornarem os fantasmas aterrorizantes que os
perseguem no silêncio dessas tardes frias. Descobriria um dia que esperara
demais, como em todos os livros mais bobos que já tinha lido.
Agora percebo que como o mar, ela o arrastou para sua
própria imensidão. Conspirou com a força dos ventos e se reuniu com a
filosofia. Lançou mão de ferramentas poderosas para essa tentativa. Não estava
apostando para perder. Não mais. Ela tomou você para si bruscamente e fez o
favor de não olhar pra trás enquanto quebrava os ponteiros do relógio. O tempo
a olhou feio de cima e rugiu. Ela fingiu que não viu. Era domadora de nuvem,
tinha o xicote da coragem costurado no pulso. Leão de fim de inverno? Não era a
batalha mais fácil de ganhar. Ele a jogou na garupa da moto e pegou a estrada.
Eles realmente pegaram a estrada. Adiaram o fim do mundo, mas comemoraram como
o fim da guerra. Não era. Foram tantos passeios que calculavam terem aposentado
a companhia de quase todas as outras pessoas, à exceção do leãozinho e de você.
Houve momentos em que o cinza sumiu do horizonte e tudo que se via era um azul
brilhante.
Acontece que a tempestade é o impiedoso capataz do tempo.
Animal não compete com o mundo porque não se compete com céu carregado. Se o
tempo fosse um homem ele seria impiedoso e usaria chapéu. Mas o tempo é o
senhor da vida. E aqui, nesta vida, a chuva os pegou.
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