Era bem cedo de manhã e alguns gados já pastavam ao
longe. Eu encostei na coluna da varanda e fiquei ouvindo-os mugir no vazio do
vale da Paciência. Podia jurar que uns parentes da vó Cidinha também conseguiam
escutar lá no condado de Maricá, tão longe o eco parecia chegar vencendo
barreira por barreira as fileiras intermináveis de araucária que ocupavam o
topo daqueles montes. O sol se desvendava ligeiro por detrás do cume ao leste e
o cheiro da loja de papai invadia dançante o meu nariz, anunciando que o café
preto estava pronto à esquentar as idéias! Devia ser umas quase sete horas. Eu
tinha acordado muito antes disso. Levantei devagar e saí de fino do quarto, pra
não acordar meus irmãos. Arrastei os pés e destranquei os trincos. Se dodô me
pega é o fim. Mas não tem nada melhor que ver o dia chegar, tão silencioso e
colorido. Se bem que nem sempre é tão silencioso. Há aqueles dias em que os
animais estão atacados e os gansos, cigarras, galinhas, coelhos, porcos e bois
resolvem cantar uma sinfonia de me fazer querer fugir do mundo. Nunca fugi. Tem
sempre grilos pra onde eu vou, de qualquer forma. Você se acostuma com o som, porque
volume de mundo não se abaixa. E você até passa a gostar. Hoje eu não queria o
café do pai, estava de mal com a vida. Tinha umas questões perturbando a minha
cabeça. Sabe? Não importa o quanto você tenta ser legal com as pessoas, algumas
simplesmente não retribuem. O imbecil do Toninho, por exemplo. Ele mora aqui
atrás, o pai dele alugou os fundos da barraca do seu Nico. Vieram do norte. O
lugar é pequeno e quente, e às vezes me dá uma dó danada quando eu passo e vejo
o Toninho fazendo o dever no quintal, por causa da luz, mas isso não justifica
nada! A peste do garoto me veio chorando contar a história horrível de que
tinha ido atrás dum pintassilgo e caído do tronco podre de uma mangueira. Ele
tinha uns arranhões fortes nas pernas e braços e mancava um pouco. Estava todo
lanhado.
-“Ai, cara. Tá doendo muito. Mas vai ficar bom, vai ficar
bom.” – Ele parecia bastante otimista quando dizia isso, mas segurava o ar na
bochecha pra não respirar a dor nem deixar transbordar os olhos. Nas mãos
carregava as duas partes do estilingue, presas apenas pelo elástico. O galho
tinha partido ao meio. O moleque tava chorando e eu detesto ver moleque
chorando, então eu levei ele na torneira e gastei um pouco de água e gogó. No
fim, catei o estilingue vermelho e entreguei na mão dele.
-“Toma, não é o seu mas é bom também.”
O danado me olhou com os olhos brilhando. As lágrimas
secaram na hora.
-“Poxa, Betinho. Tem certeza? Tu é um molequinho bom.”
-“Claro! Pode levar! Faço outro qualquer hora dessas.”
Bem que eu achei que ele se animou rápido demais com o
estilingue, porque não demorou nada a se levantar e sair puxando a perna manca
pra fora dali. Na última olhada que me deu, percebi um ar de mistério, um
sangue quente guardado, um relance de vingança no fundo preto dos seus olhos
embaçados. Toninho era 3 anos mais velho que eu. Na hora me deu um arrepio na
espinha, pensei que fosse a brisa. Não era.
Três dias depois mamãe mal tinha acabado de atar o laço
que ia na gola do uniforme já tavam me chamando lá fora. Um tom diferente.
Coloquei o nariz pra fora e apertei os olhos. Não conhecia ninguém. Eram 3
garotos. Me aproximei devagar, deu tempo de ver bumbo passando do outro lado.
Assobiei pra ele, era nosso código.
“-Aí, você que é o Beto?” – Ele já tinha chegado a uma
distância mínima do meu rosto.
“Tá vendo isso aqui?”
O olho direito do garoto tinha uma ferida enorme. Foi a
última coisa que ví antes dum soco me acertar em cheio na bochecha. Fui da
dormência ao silêncio em poucos segundos.
Bumbo disse que os outros dois foram me bicar, enquanto o
do soco sacudia os dedos no vento. Cara dura, Betão! ele disse. Mas sei lá.
Bumbo era meio mentiroso. Se minha cara fosse dura não tava esse estrago...
Bumbo, meu irmão mais velho. Não era O mais velho, mas era mais velho que eu e
a gente vivia aprontando por aí. Mas dessa vez Bumbo não tava rindo, como
costumava rir. Riso parcelado, provocativo. Ele tirava sarro de tudo! Sempre
tirou! Mas mantinha um olhar oblíquo, fugidio. Eu entendi logo. Não aguentava
guardar tamanha raiva dentro de si. Ele ia vingar a gente.